Há muitos anos fui morar em Dourados, Mato grosso do Sul, num
gesto assim meio na loucura, tinha conhecido a região tempos antes dessa
decisão e me encantei com ela, vastidões de terras vermelhas, muitas matas,
gente de todas as partes do país se aventurando sozinhos ou com suas famílias.
Lembro particularmente desses anos iniciais naquela cidade porque
foi uma fase muito difícil de minha vida, tempos de dureza, tinha um fusca tão
velho...tão velho que quase nem assoalho tinha, eu improvisei e coloquei tabuas
por cima do assoalho todo podre um milhão de vezes esburacado.
Nem sei se era pior quando chovia ou quando estava seco, na chuva
entrava água e a lama das poças e me molhava, na seca, entrava o pó e me
sufocava.
Todos os migrantes chegavam à busca de novas oportunidades e de
repente eu estava lá também, meu primeiro "emprego" foi em uma
empresa de distribuição de produtos para agricultura como vendedor, sem salário,
sem ajuda, sem nada, poderia ganhar dinheiro apenas se vendesse para ter
direito as comissões.
Bem, eu tinha também um dinheirinho que segundo meus cálculos
permitiria umas duas semanas de gastos pessoais e despesas com meu fusquinha,
pensei, pô, duas semanas, ah, tudo joia, vai dar tempo de vender bastante, não
vou ter problema algum, com certeza, afinal sempre me achei um excelente
vendedor, dom natural de meu sangue libanês.
Assim comecei meu trabalho visitando fazendas, onde via sinais de
lavoura, entrava, procurava as pessoas até acha-las em algum canto da
propriedade ocupados com seus afazeres diários eu sempre estava
coberto de pó ou enlameado, de uma forma ou de outra estava todo sujo, não
tinha meio termo mas até ai tudo bem porque afinal meus candidatos a clientes
também estavam assim, sujos de terra seca ou molhada, então nem reparavam no
meu estado.
Apesar de eu levantar muito cedo, bem antes do sol nascer e os
primeiros raios de sol já me encontrassem falando com um ou com outro, apesar
de tudo, não estava conseguindo vender nada, um dizia já ter comprado, outro
que tinha prometido comprar com outro vendedor e por mais que eu me esforçasse
o máximo que conseguia era uma promessa:
- Na próxima safra compro de você alguma coisa.
Pensei, caramba, desse jeito morro de fome até a próxima safra, o
que vou fazer? como vou fazer? como vou levar comida para minha casa? era
tantas perguntas na minha cabeça me atormentando o tempo todo, eu mesmo nem
comia o dia todo, às vezes encontrava uma "venda" (tipo boteco,
mercearia, algo assim) no meio do nada, comprava um pão "amanhecido",
o cara dizia que era de ontem, mas a aparência era assim no mínimo de um ano
atrás, seja como for, pegava o tal pão, dava uma molhadinha nele e mandava para
o "bucho", aquilo nem era me alimentar, era mais tipo engolir
qualquer coisa para permanecer de pé, mas tudo bem, já, já ia fazer uma boa
venda e com certeza tudo iria melhorar, com certeza.
Os dias foram passando, estava se tornando uma rotina, sair de
madrugada, andar o dia todo até o cair da noite, falar, falar, e falar com um
monte de gente e nada, nada, nadica de nada de vendas.
Oh, meu DEUS, que barbaridade, quem tem amor tem saudade, a essa
altura eu até falava como gaúcho, que era o povo que mais tinha naquela região,
tchê pra cá, tchê pra lá, aprendi até a tomar chimarrão.
Para quem não conhece o chimarrão é o chá moído bem fino que é
tomado em uma cuia apropriada, é feito um buraquinho para introduzir um objeto
pelo qual se chupa o liquido, ah, me esqueci de falar que vai se colocando água
fervente e vai se tomando e tem ainda uma coisa que estranhei bastante no
primeiro dia, todos eles sentam em roda, uns bem perto dos outros.
Vão tomando o chimarrão, tornam a encher de água e vão passando
para o mais próximo, estranho mas bonito de ver, eles não se incomodam de tomar
na mesma cuia, tudo super natural.
Bem, dai, na primeira que vez me convidaram eu estava tão louco a
fim de fazer amizades para poder vender meu peixe que aceitei na hora e já fui
logo me espremendo e sentando no meio daquela roda, coisa estranha, me espremer
para sentar no meio daquele povo todo sujo e suado dai me lembrei de que eu
estava igualzinho a eles até deve ser por isso que me convidaram.
Então, fui tomar minha primeira cuia de chimarrão ansioso,
pensava, caramba isso aqui deve ser uma bebida dos deuses, eles tomam aquilo
com tanto gosto, deve ser bom demais e fui chupando aquilo como uma voracidade
violenta.
Já estava mesmo quase morto de fome e pensei, ah, vou é me
entupir com isso aqui é agora mesmo, MEU DEUS, pra que? quando o liquido chegou
à minha boca já chegou me queimando, me cozinhando, estava super quente,
fervendo, barbaridade.
Tchê, que vergonha, mas não joguei fora não, engoli tudo, tudinho,
claro que ai não queimou só boca e língua, queimou foi tudo por onde passou,
respirei super fundo, tentei engolir saliva umas mil vezes para refrescar os
queimados, tudo isso sem demonstrar nada e ainda fui puxando conversa com a
roda.
Bem, na segunda sorvida eu já estava esperto, fui puxando e
soprando ao mesmo tempo, lembrei naquela hora de aflição que meu PAI sempre
tomava o seu café escaldante e fazia um barulho que na época eu achava até meio
nojento, sorvia e meio que soprava, é difícil de explicar isso em palavras mas
sorte, sorte mesmo que lembrei e passei a fazer o mesmo e para minha grata
surpresa, funciona mesmo, impressionante.
A bebida chega à boca ainda quente mas muito menos, quase morna,
foi ai que eu verdadeiramente senti o gosto do tal do chimarrão, sabor forte,
intenso e amargo, bastante amargo, eles tomam principalmente depois das
refeições, adoram comer alimentos bem temperados e gordurosos e dizem que podem
comer qualquer coisa que o chimarrão dissolve tudo e deve ser verdade mesmo.
Mas enfim, gostando ou não gostando me habituei a tomar o
chimarrão umas quinhentas vezes por dia, (de fome não morri acho que por isso),
impressionante, todo lugar que chegava, olha lá o povo tomando chimarrão.
Ora, tinham me dito que era após as refeições, caramba, será que
eles comem o dia todo? e eu que só chego depois disso, isso que é má sorte, que
coisa, nem pra chegar na hora mais adequada, quem sabe me convidariam para
comer juntamente com eles, é, não tive essa sorte mas tudo bem.
E os dias passando, o dinheiro já nos últimos instantes de vida,
acho que dava para mais um, máximo dois dias, vendas, estaca zero e eu já quase
no desespero total, já me via vendendo meu valente fusquinha que era o único
bem que tinha, ai, ai, se chegasse a isso para comer o que faria depois? parei
num canto da estrada de terra, fui para baixo de umas arvores e orei, orei,
orei como nunca antes tinha orado:
- MEU DEUS, estou em suas mãos, imploro por sua ajuda, você tem
acompanhado minha luta, não como o pão da preguiça, saio antes do sol nascer e
volto com a noite para casa, tenho feito isso todos os dias com o coração
alegre e sempre esperançoso, não tenho medido esforço, confio em ti, confio
inteiramente em sua vontade, assim seja.
Me senti melhor depois desse desabafo, muito melhor, (um dia esse
foi meu desabafo mas foi virando minha oração, meu guia e meu norte),era como
se tivesse ganhado um novo fôlego, uma extensão de vida, nem sei como traduzir
essa sensação mas é algo mágico, bem, dai, fui fazer novas visitas e meu dia
foi passando, eram umas seis da tarde e como estava bastante longe de casa
decidi começar meu regresso.
Vinha vindo pela estrada de Caarapó a Dourados, trecho de uns
cinquenta quilômetros em terra, que estradinha, ah, quantas recordações dela,
quando chovia tinha que colocar até correntes nos pneus para poder andar nelas,
aquilo escorregava mais que sabão, bem, dai vinha vindo, vinha vindo e já me
aproximava de uma vilinha que ficava no meio do caminho, Nova América, que nome
pomposo, hem? ao longe vi um vulto acenando, há que se dizer que aquela região
era muito perigosa, caminho do contrabando, armas, açúcar, drogas, passava tudo
por ali vindo do Paraguai e tudo era escoltado por homens mal encarados armados
até os dentes, carona, ninguém dava para ninguém a não ser que fosse conhecido,
dai fui chegando, fui chegando e mais perto vi que era um senhor de idade, uns
setenta anos, creio eu, pensei, ah, vou levar, que perigo tem? vai querer me
roubar o que? meu pobre e bichado fusquinha?
No caminho o senhor tentava puxar papo e eu, tão cansado, tão
acabrunhado nem tinha ainda olhado o rosto dele, todo concentrado nos meus
problemas até que em algum momento ele falou:
- Tenho uma fazenda lá onde você me pegou e preciso ir fazer compras
em Dourados, adubo, inseticida, etc.
Bah, dei um pulo no banco do fusquinha que quase furei o teto, fui
para o céu e voltei para a terra:
- Como? ah, mas eu vendo tudo isso, meu nome é Ahmad, que
prazer enorme em conhecê-lo, desculpe não ter falado com o senhor antes, estava
aqui lembrando de todas as vendas que fiz hoje, estou vendendo super bem, já
estou pensando em tirar um carro zerinho, (DEUS ME PERDOE), bem, mas o senhor
vai ficar onde em Dourados?
- Vou ficar na casa de minha filha.
- Vou levar o senhor até lá, pode ficar tranquilo e amanhã cedo a
que horas quer que vá buscá-lo?
- Pode vir às sete da manhã.
- Sim, com certeza, as sete estarei aqui, pode ficar
tranquilo, meus produtos são da mais alta qualidade com preços super bons, vai
fazer grandes negócios comigo.
No outro dia as cinco da manhã já estava na porta da casa da filha
dele de tocaia:
- Ah, mas ele não sai sem eu ver de forma alguma mas não mesmo.
Dai as sete em ponto ele saiu e na hora o levei para a empresa na
qual eu trabalhava, que, alias ele conhecia, já tinha comprado lá outras vezes
e tinha gostado, mais um ponto a meu favor, passei quase toda a manhã com ele,
fiz a venda de tudo que ele precisava, preciso dizer que a venda me deu uma
comissão bem alta, para quem estava no zero, era uma fortuna, hehe, e mais,
muito mais que isso, ele me perguntou se eu conhecia algumas outras vilas que
existiam em regiões próximas, Carapã, Laguna Carapã, e foi me dando um monte de
nomes de fazendeiros:
- Alexandre, Pedro, João, Marcos, etc, etc, esse é cunhado desse,
aquele é primo daquele e assim por diante.
Fiz uma lista de uns trinta nomes, e ele ainda me dizendo:
- Pode se apresentar em meu nome, Sebastião Pedroso de Nova
América, todos me conhecem, diga que só compro de você, pode falar bem desse
jeito.
É, foi assim mesmo, comecei a me sentir vivo de verdade e a
partir desse acontecido comecei uma trajetória de sucesso naquela terra
abençoada, meu fusquinha ainda permaneceu uns meses sem que seu pudesse
arruma-lo mas ô bichinho valente, em momento algum me deixou na mão.
Minha vida foi melhorando depois disso, comprei um terreno e
comecei a construir minha casa, tijolo por tijolo e com o tempo surgiram
melhores oportunidades, até o meu valente fusquinha já tinha melhorado
bastante, tinha um novo assoalho e um visual mais bonito.
Alguns meses depois consegui um
emprego melhor como vendedor de equipamentos pesados tais como trator de
esteira, motoniveladoras, essas coisas, tinha um fixo e comissões, um paraíso na
terra.
No meu novo trabalho tinha que visitar grandes fazendeiros, prefeitos, grandes
empresários rurais, e eu ia, todo lampeiro mas por vergonha deixava o carro, (ainda meu
fusquinha), há pelo menos uns dez
quarteirões do escritório dos caras, compreensível, na porta deles só tinha caminhonetes do ano e carros importados.
Todo mundo sabe que a conversa com esse pessoal é da pesada, só
falam de milhões, milhares de alqueires, carros importados super caros e quando falam de
mulheres, falam de modelos, de atrizes de cinema e televisão, o papo é por ai, e eu lá,
ainda contando todo o meu dinheiro para ver se dava para comprar mais uns tijolinhos, pagar as contas e economizando tudo que podia para o "danadinho" chegar ao fim do mês.
Seja como for estava lá eu no meio daquela conversa toda, no meu rosto o melhor dos sorrisos, de bem com a vida, nem ai com nada, dava meu recado, tentava fazer minha venda e ai chegava a hora de ir embora e me despedia assim:
- Ah, hoje vou ter que andar um pouco, deixei meu carro na primeira revisão, mas andar faz bem também, não? forte abraço e até a próxima.
Bem, aprendi sim a ser humilde mas baixar a cabeça e me entregar? - jamais.
Seja como for estava lá eu no meio daquela conversa toda, no meu rosto o melhor dos sorrisos, de bem com a vida, nem ai com nada, dava meu recado, tentava fazer minha venda e ai chegava a hora de ir embora e me despedia assim:
- Ah, hoje vou ter que andar um pouco, deixei meu carro na primeira revisão, mas andar faz bem também, não? forte abraço e até a próxima.
Bem, aprendi sim a ser humilde mas baixar a cabeça e me entregar? - jamais.
Recomendo:
Em tempos de pendura e dureza: O negócio é comer chuchu e arrotar peru, porque ficar reclamando da vida só faz com que a vida fique ainda pior, com certeza.
Agora em tempos melhores, a que todos tem direito depois de muita luta, ai é diferente, bem diferente, é melhor comer filé mignon, mas para não ser arrogante nem querer se aparecer, é melhor arrotar arroz com feijão, afinal humildade nunca fez e nunca fará mal a ninguém.
Em tempos de pendura e dureza: O negócio é comer chuchu e arrotar peru, porque ficar reclamando da vida só faz com que a vida fique ainda pior, com certeza.
Agora em tempos melhores, a que todos tem direito depois de muita luta, ai é diferente, bem diferente, é melhor comer filé mignon, mas para não ser arrogante nem querer se aparecer, é melhor arrotar arroz com feijão, afinal humildade nunca fez e nunca fará mal a ninguém.
Às vezes chego até a ter saudade do meu querido e abençoado fusquinha azul céu, qualquer que tenha sido seu destino, deve ser apenas uma sombra do que foi um dia, adormecido em algum ferro velho por ai, sei lá, mas de qualquer forma só tenho que agradecer a
ele, a ele e principalmente a DEUS, obrigado, obrigado,obrigado
AHMAD SERHAN WAHBE
AHMAD SERHAN WAHBE